segunda-feira, outubro 18, 2010

Resenha (1)



GABEL, John B; WHEELER, Charles B; A Bíblia como literatura, Loyola, São Paulo, 1993.

O livro “A bíblia como literatura” de dois professores de literatura inglesa da universidade norte-americana de Ohio, John B. Gabel e Charles B. Wheeler tem sua primeira edição brasileira publicada no ano 1993. Traz como proposta ser uma introdução geral sistemática ao estudo da Bíblia como literatura. Não é um comentário bíblico, não defende o valor da Bíblia, não supõe ponto de vista interpretativo. Embora não negue valores morais e religiosos, não os coloca como objeto de análise. Basta aos propósitos dos autores a análise da Bíblia como fascinante documento humano. A Bíblia, para eles, é humana, embora, reconhecem, possa ser mais. Ao ler o livro o leitor compreenderá como a bíblia veio a existir, a razão pela qual tomou a forma que tem e que ocorreu com ela ao longo dos séculos.
No primeiro capítulo descrevem a Bíblia como um livro como qualquer outro, produto da mente humana, escrito por pessoas reais em épocas históricas concretas. Em Atos, exemplificam, Lucas ao narrar um evento- seleciona, dá ênfase, escolhe palavras e as organiza segundo seu propósito. Vêem a bíblia como uma antologia de 1000 anos, tendo conteúdo religioso e nacionalista. Entre os problemas literários do texto apontam contradições, duplicações, omissões, interpolações. Estes em parte resolvidos e explicados pela múltipla autoria; complicados pela idéia religiosa de autoria única divina. Revelam uma Bíblia composta, compilada e moldada, que recebeu acréscimos, foi editada, copiada, traduzida, interpretada. Todos esses processos merecem atenção, e deles procuram se ocupar no livro.
Abordam as formas e estratégias literárias na Bíblia. Os autores classificam entre os tipos literários encontrados- a hipérbole, a metáfora, o simbolismo, a alegoria, a personificação, o jogo de palavras, a poesia (quiasmo e paralelismo).
Sobre Bíblia e história, advertem que não é próprio ler a Bíblia como um livro de história, que ela não é longa o bastante para cobrir uma história de dois mil anos, que dezenas a centenas de anos são pulados em uma única frase ou simplesmente desprezados. Argumentam sobre o alto grau de seletividade que contava o passado se moldando as necessidades da audiência presente. Gaber e Wheeler entendem que os escritores não queriam fazer história de forma objetiva, mas atender as necessidades do público de sua época. Apesar disso atribuem algum valor histórico a Bíblia, por ser ela uma fonte única de tanta coisa que está nela contida.
Os autores trazem um capítulo dedicado a descrever o ambiente físico da Bíblia, onde é trabalhado o espaço onde os escritores bíblicos viveram- o clima, a geografia e a sociedade.
Ao abordarem a formação do cânon denunciam como errada a compreensão que a Bíblia é um documento único, completo e integral, não modificado e imutável, que transcende as condições da vida na terra. Para os autores Deus pode ter inspirado, mas homens escreveram. Definem canonização como um processo que envolve longo tempo e consenso, onde os fiéis determinam e criam os textos que querem ter. Questionam a imutabilidade do cânon bíblico, os argumentos que definem o que é inspirado e o que não é inspirado e afirmam que todos os grupos religiosos trazem um cânon dentro do cânon.
Sobre a composição do Pentateuco o percebem como produto de escritores e editores anônimos. Trabalham a critica das fontes que inclui: a autoria, as fontes, a redação, a transmissão textual, as formas literárias e a intenção.
Trabalham o surgimento dos profetas e seus textos, enxergam muitos deles como compilações de oráculos sem organização lógica e coerência. Levantam a questão- seriam os profetas, poetas? Ao apontar como fato a grande parte da profecia bíblica em gênero ser poesia. Questionam a “tipologia” cristã, que enxerga o dito lá nos profetas como aplicado a Jesus. Levantam o problema- como escritos proféticos totalmente enquadrados na história do Séc. VIII ou VI puderam ser liberados da história e levados a se referir à grande história do Novo testamento? O que se deve pensar dessa espécie de interpretação da profecia que ignora as reais circunstâncias históricas a que ela se aplica? Defendem então que todo leitor sério deve usar da referência histórica, e embora ela não esgote o significado da profecia bíblica, é inegável trazer dela o fundamento para todas as demais significações genuínas.
Sobre a literatura sapiencial bíblica, apontam sábios anônimos como seus escritores, e creditam a esses escritos distinção teológica de outros autores bíblicos. Sobre esses livros pontuam: 1) não fazem menção de culto e religião; 2) não parecem ter espírito nacionalista; 3) os escritores não estavam voltados para seu passado; 4) embora acreditassem em Deus e na criação de um universo ordenado, não eram entusiastas da religião e não tinham uma concepção de relacionamento pessoal entre Deus e os homens.
Atribuem ao autor do livro de Daniel a inauguração do gênero apocalíptico. Discursam sobre as propriedades desse gênero. Gaber e Wheeler entendem como convenção literária da época, e não desonestidade, o fato de tantos livros bíblicos antigos, levarem nomes de autores que jamais poderiam tê-los escrito. Entre os exemplos, citam Daniel.
Separam um capítulo para descrever o contexto político, cultural, econômico e religioso entre os dois testamentos. E um capítulo para abordar os livros apócrifos e os pseudepígrafos, onde é retomada a discussão sobre canonicidade, inspiração e autoria.
Ao discursarem sobre o Novo testamento atribuem a Marcos o crédito de primeiro evangelho escrito e fonte comum aos outros, tanto de gênero quanto de dados. Marcos, assim como Lucas, Mateus e João trazem sua concepção pessoal de Jesus. Com que precisão, perguntam os autores, essas narrativas representam o comportamento real de Jesus? Certamente, afirmam, não podemos ter tal resposta além do documentado pela concepção desses autores. Pensam a relação dos evangelhos com o Antigo Testamento como bastante complicada, porque estes o afirmam e negam, o usam e substituem. Apontam essa ambivalência dos cristãos com o Antigo testamento como visível até os nossos dias.
Pela abordagem histórica de Lucas em Atos, entendem que para os historiadores antigos a necessidade de instruir e edificar tinha ao menos tanta importância quanto à de informar. Citam possíveis conflitos entre as cartas de Paulo e a narrativa de Atos.
Dedicam curtos espaços as cartas gerais e as consideradas por eles anônimas, e mostram elevada apreciação no conteúdo e na análise das cartas paulinas, apontando-as como uma das maiores fontes de gratificação do estudo literário da bíblia. Acreditam os escritos paulinos radicalmente originais e profundos. Enxergam arbitrariedade de Paulo ao buscar textos na septuaginta para comprovar suas argumentações teológicas cristãs.
Dedicam um capítulo a descrever o desenvolvimento das traduções bíblicas, a evolução desse processo e os desafios recorrentes a essa tarefa.
Ao analisarem a interpretação religiosa da bíblia destacam os principais pontos que a religião extraiu do texto bíblico- história sagrada, doutrinas teológicas, preceitos morais, estrutura e pratica eclesiástica, idéias sobre o fim dos tempos e orientação pessoal. Ressaltam as diferentes formas de interpretação utilizadas pelos cristãos ao longo dos anos, desde a não-literal ou alegórica até a chamada crítica alta que há apenas dois séculos iniciou o estudo histórico-literário. Como a bíblia não é auto-evidente, afirmam os autores, esta favorece a seleção de material e interpretação de cada corpo religioso.
Por fim o livro apresenta apêndices com detalhes sobre a escrita nos tempos bíblicos, as traduções da bíblia no Brasil e a literatura sobre o estudo da bíblia no Brasil.
A bíblia como literatura se mostrou uma leitura extremamente agradável, provocativa e desmistificadora. Certamente recomendo o livro, sobretudo para o público religioso acostumado a uma abordagem dogmática e mística da Bíblia. Vejo seriedade e preocupação dos autores ao abordarem o texto bíblico e suas dificuldades, em contraste com a religião, comumente abordando as escrituras de forma superficial, símplice e descompromissada com a realidade. O livro amplia a compreensão do texto bíblico, de seu contexto, de sua origem, de quais perguntas devemos fazer ao buscar interpretar o que lemos. O livro atende bem aquilo que se propõe- ser introdução ao estudo literário bíblico. Para um aprofundamento no tema é preciso buscar outras fontes mais densas. A leitura mostra sutilmente um recorte de vários teóricos e eruditos da abordagem literária bíblica, compilados e organizados. Nesse sentido, é um bom recurso de pesquisa imediata, e me parece ser essa a proposta didática dos autores.
Observo como ponto negativo, que em alguns momentos os autores levantam problemas que não tem intenção de resolver ou propor possibilidades, e em outros aceitam resoluções rápidas e convenientes às suas intenções, o que pode trazer irritação ao leitor e no mínimo deixa uma lacuna. O fato de o livro trazer no fim de cada capítulo referências bibliográficas para posterior pesquisa, não elimina as dificuldades do leitor com as constantes polêmicas que surgem na leitura. Nesse sentido, se encontram muitas afirmações controversas no meio erudito e aquela que os autores tomam, só é perceptível ao já conhecedor do tema, o que contraria a proposta introdutória do livro. Os autores em muitos momentos revelam com veemência sua critica pessoal contra as tradições religiosas, criticam, por exemplo, a cultuada tradução inglesa King James inúmeras vezes. Fato, que para o leitor em contexto brasileiro, tem pouca ou nenhuma importância. Essa implicância particular dos autores em alguns momentos acaba por aumentar desnecessariamente a suspeita do leitor em outras argumentações do livro.
Concluo exaltando a ênfase na origem humana da Bíblia, dado que para mim torna o livro imprescindível para aqueles que levam o texto bíblico a sério em todas as suas esferas e buscam nele sua inspiração, seja mística, seja literária. Deus inspirou, o homem escreveu.


Ricardo F. Silva
Livre, preso, pleno, em Cristo

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