segunda-feira, outubro 18, 2010

Resenha (4)



FROMM, Erich. O Dogma de Cristo e Outros Ensaios sobre Religião, Psicologia e Cultura. 2° ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1965

Erich Fromm em sua obra analisa a situação sócio-econômica dos grupos sociais que aceitaram e difundiram os ensinamentos cristãos, sobre essa base ele propõe uma interpretação psicanalítica. Delimita sua investigação a análise da evolução dos conceitos sobre a relação de Deus Pai com Jesus até a formulação do credo Niceno, no século lV.
Fromm procura deixar claro que as transformações dos conceitos religiosos estão intimamente ligadas à experiência das várias relações infantis possíveis com o pai ou a mãe. Estuda as pessoas a fim de entender o dogma das pessoas.
Ao trabalhar a função sócio-psicológica da religião diferencia impulsos do ego, mantenedores da vida, dos impulsos destruidores, libidinosos. Estes últimos não são imperativos, portanto, passíveis de sublimação. Coloca na sociedade a dupla função na situação psíquica do indivíduo, frustrá-lo e satisfazê-lo.
A mais velha fonte de satisfações fantasiosas coletivas para Fromm é a religião. Se colocando ao lado poesia, arte e filosofia. A religião tem uma tríplice função: 1) para toda humanidade, serve de consolo às privações impostas pela vida; 2) para grande maioria dos homens, é um estímulo à aceitação emocional de uma situação de classe; 3) e para minoria dominante é um alívio dos sentimentos de culpa provocados pelo sofrimento daqueles a quem oprimem.
Cita Freud quando este assinala que a impotência do homem frente a natureza é uma repetição da situação em que o adulto se viu quando criança, quando não podia passar sem ajuda dos pais. O sujeito transfere dos pais os medos e amores infantis, e também hostilidade, para uma figura da imaginação, para Deus. Nesta servidão infantil está uma das garantias da estabilidade social, visto ser Deus sempre aliado dos governantes.
Fromm passa a discorrer o contexto econômico, social, cultural e psíquico que dá origem a religião cristã. Define o perfil dos cristãos primitivos: os incultos, os pobres, o proletariado, os camponeses, que devido a opressão e desprezo social sentiam a necessidade de modificar as condições existentes. Nutriam a esperança que um pai bom os libertasse e a este amavam em fantasia. Ambivalentes odiavam o pai malvado, o governo, que o oprimia. Aqui aponta Fromm surge o cristianismo como movimento histórico significativo.
A fé cristã primitiva no homem sofredor que se tornou Deus tinha sua significação central no desejo implícito de derrubar o Deus pai ou seus representantes terrestres. A figura do Jesus sofredor originou-se primordialmente na necessidade de identificação das massas sofredoras e posteriormente pela necessidade de expiação do crime de agressão contra o pai.
Ao término do século ll, conquistando adeptos em todo o império romano, o cristianismo já havia deixado de ser a religião dos artesãos pobres e dos escravos. Com Constantino, tornou-se religião do estado, transformou-se na religião da classe dominante. O mundo histórico, real, já não necessitava transformação. A salvação se tornara interior, espiritual, não histórica, uma questão individual assegurada pela fé em Jesus. Passou então de religião dos oprimidos a religião dos governantes e das massas por eles oprimidas, da expectativa do dia do juízo e de uma nova era para a fé na redenção já consumada, de uma vida pura e moral para a satisfação da consciência através dos meios eclesiásticos de graça, da hostilidade ao estado para um acordo cordial com ele.
Com a mudança social e econômica o dogma evoluiu, Deus que virou homem, não o oposto. O pai, o governo, não precisa mais ser derrubado. A satisfação vem do perdão e amor. Jesus torna-se finalmente Deus sem derrubar Deus, porque sempre foi Deus. Fromm aponta que a doutrina hoomousiana de que dois é igual a um remete a uma situação real que faz sentido: a criança no ventre da mãe.
O conceito de Deus Pai também se modifica. O pai forte e poderoso tornou-se a mãe agasalhadora e protetora. Surge a figura divina da Grande Mãe, figura dominante do cristianismo medieval.
Fica claro para Fromm que tanto a fantasia do Jesus sofredor, quanto a do menino Jesus no seio da mãe são expressão do desejo de perdão e expiação. Essas fantasias também significam que os homens tinham de regredir a uma atitude passiva, infantil, o que impedia a revolta ativa. Sinônimo de dependência dos governantes para subsistência e a percepção da fome como prova dos pecados.
A partir do dogma de Nicéia os apologistas procuraram apresentar o cristianismo como a mais alta filosofia. A fé se transformava em doutrina. Exigia-se fé na fé, fé na religião. Isso preparou caminho para o édito de Constantino.
Encerra seu ensaio configurando o catolicismo como volta disfarçada à religião da Grande Mãe e colocando o protestantismo como religião que se voltou para o Deus Pai em uma época social que permitiu uma atitude ativa da parte das massas, em contraste com a passividade infantil da idade média.
No seu prefácio, Erich Fromm afirma que quando escreveu essa obra (1930) era rigorosamente freudiano e que certamente faria muitas revisões no seu texto, mas que não estava dentro de suas forças tal trabalho e concorda em publicar mesmo assim sua versão em inglês (1963). Concordo com ele quando afirma que muito se publicou após sua obra, o que deveria ser levado em conta numa possível revisão. Ainda assim seu texto, mesmo desatualizado, continua relevante para o estudante da religião, sociologia e psicologia. Tem sua razão de ser. Leitura indispensável, excelente contribuição para compreensão do desenvolvimento social-psicológico da fé cristã, divisora de nosso calendário.
Acrescento que enriqueceria seus argumentos se desse mais espaço em sua análise a principal produção dos cristãos: a Bíblia sagrada, ou como os cristãos percebem e contam suas histórias e doutrinas. Melhor ainda, como contam a história de seu Messias. Este, somente analisado como idéia e conceito em evolução, não como possível personalidade histórica intrigante em seus discursos.
Embora mostre maestria nas suas interpretações, enxergar toda a realidade a partir do viés psicanalítico gera desconforto no leitor pouco habituado, podendo ficar a impressão de reducionismo, curiosamente, comum aos que professam alguma fé.
Por fim, o livro me fez lembrar o poeta amigo, Renato Brito “É tudo invenção, sem mentira nenhuma...”. Ao que Freud supostamente não perderia tempo, “é ilusão...”; eu me contento com a possibilidade de.

Ricardo F. Silva
Livre, preso, pleno, em Cristo

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